Somos um país bárbaro, receber uma câmera é algo experimental, diz Bressane

“Que cinema é esse?”, a Mostra de Cinema de Tiradentes lança em sua 28ª edição. A questão, entre várias abordagens nos textos do catálogo e alguns no site do festival fazem um chamado fundamental sobre lançar novas perguntas sobre o que seria esse cinema, e não repetir as mesmas questões de sempre.

“Existe uma produção numerosa e complexa, e é preciso olhar para ela, não só como exercício de contemplação da beleza, do intrigante e da singularidade, mas se aplicando a um esforço de ver e discutir esses filmes, o que, do ponto de vista ético, é contrair responsabilidade pelo que se vê”, firma o coordenador curatorial do festival, Francis Vogner dos Reis, no catálogo do evento.

Marca desse festival, essa interação mais consciente e ativa do espectador coincide com a questão citada mais acima. E que foi feita pelo crítico francês André Bazin no título de seu lendário livro, “O Que É o Cinema”, mas nunca respondida ali, como lembra Reis.

A mesa que reuniu em Tiradentes os cineastas Julio Bressane, Darks Miranda e Rodrigo Lima, além do pesquisador e diretor da Cinemateca do MAM-RJ, Hernani Heffner, refletiu sobre o que poderia ser “o cinema brasileiro”. A identidade estaria no início de tudo, o essencial distintivo da cinematografia: a matéria fílmica com sua química fotográfica, os fotogramas, a trucagem.

E, particularmente, nasceria já moderno. Em texto publicado em abril de 1993 no caderno Mais!, “O Experimental no Cinema Nacional”, Julio Bressane afirma existir o experimental já “no nascedouro do nosso cinema”.

O plano mítico dos irmãos Segretto, em 1898, filmando a Baía da Guanabara com câmera instável presa no convés de um navio, seria a primeira manifestação de modernidade do cinema moderno.

O cineasta Carlos Adriano, que apresentou em Tiradentes “Sem Título #9: Nem Todas as Flores da Falta”, disse à Folha que, para ele, o “experimental começa com a filmagem de Cunha Salles”.

Médico, advogado e inventor, José Roberto da Cunha Salles deixou, em 24 fotogramas, um ancoradouro que ele filmou em novembro de 1897. Carlos Adriano utilizou essas imagens em “Remanescências”, de 1997.

O cineasta diz que toma “a imagem como enigma, estas duas palavras formando um anagrama quase perfeito, e é justamente nesse ‘quase’, nessa ‘falha’, que pode residir uma operação poética de invenção”.

A reapropriação de arquivos, “found footage”, que Carlos Adriano faz há 30 anos coincide com o que Bressane tem feito desde os anos 1960 —revisitar, por alusão, as origens do pensamento.

Não é por menos que, agora, em “Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísica”, exibido em Tiradentes, Bressane e Rodrigo Lima reúnem trechos de 48 filmes feitos entre 1898 e 2022 justamente para confirmar —e celebrar— a inovação e modernidade do cinema brasileiro desde sempre.

O experimental diz muito a Bressane, que, no debate, definiu seu conceito de cinema dizendo que “nós não vemos o cinema, vemos o filme, vemos os atores, a cor, a trama, os penduricalhos”. O cinema não seria visto, pois invisível. Estaria oculto. “Agora, tem alguns momentos em que ele se desvela, aparece”.

E, continuando sobre o experimental, “nós somos um país bárbaro, sem tradição, sem tecnologia, sem nada, daí receber uma câmera ser algo experimental, porque é fazer filme pela primeira vez”.

Darks Miranda —nome artístico da diretora, videoartista e montadora cearense Luisa Marques, algo que inscreve uma presença da artista em sua própria obra— tem no impressionante “A Maldição Tropical”, de 2016, um forte diálogo com Bressane. O filme de Marques faz uma belíssima apoteose de texturas —termo importante ao cineasta, e que, junto com o grão, define perfeitamente o fenômeno cinematográfico.

“Quando o cinema abraça essa tradição literária do século 19 para evidenciar ou priorizar a narrativa ou a ilustração, como o Bressane estava falando, existe esse procedimento de montagem, que posteriormente foi teorizado e chamado de sutura, que é um procedimento médico de costura, para curar, e acho que a a prática de montagem na moviola desde sempre esteve muito ligado a essa ideia corte, cola, costura”, diz a diretora, citando “Frankenstein”, de Mary Shelley.

A sutura evidente, que a cineasta relaciona à montagem e sua “propensão à monstruosidade”, seria um instante revelador do cinema emergindo do filme.

Parceiro criativo de Bressane desde 2006, quando montou “Cleópatra”, Rodrigo Lima diz que, às vezes pouco percebida, “a linguagem é transformadora, ela é a realidade, e precisamos operar dentro da linguagem para alterar a realidade”. A montagem, assim, é uma questão crucial.

E as imagens em si, também. Hernani Heffner volta ao citado filme dos Segretto para falar do estado de coisas do país. “Num esforço de pensamento, o que teria sido esse primeiro filme brasileiro feito no tombadilho pelo Alfonso Segretto, pois o filme nunca aconteceu, e podemos ter uma relação de pensamento, de reflexão, de invenção a partir delas, e no Brasil esse esforço é quase gigantesco, a gente perdeu muita coisa, talvez a metade do que a gente fez até hoje”.

E a textura volta à pauta na conversa. “Esse afã de voltar à forma original do objeto é uma quimera porque, na verdade, nada no mundo, no universo, se mantém do mesmo jeito para sempre, o movimento é justamente alterar essa forma, sobretudo as texturas”, diz Heffner.

Bressane retoma seu pensamento e diz que “nuance é uma delicada diferença entre coisas semelhantes, e é essa a dificuldade, você perceber onde tem essa vírgula impressionista, e você tem que ver o cinema não a partir do fotograma, mas a partir do grão, milhares de grãos numa pasta sensível à luz”.

Heffner e Bressane dialogam através de um mesmo filme, “Porto das Caixas”, de Paulo César Saraceni. O primeiro diz que adora o filme, acha extraordinário, mas o que o impressionou lá nos anos 1980 foi o brilho da cópia, a luz que Mário Carneiro tinha criado para o filme, uma sensação quase etérea provocada por aquela imagem, e aí reviu essa mesma cópia uns seis anos atrás e esse brilho tinha desaparecido, já não era mais o mesmo objeto, que provocava outras sensações, outros afetos.

Mais agudo, e também bem preciso na análise, Bressane diz que “aquele brilho era tudo, aquilo era o que transformava, e isso se perdeu, hoje você vê ‘Porto das Caixas’ como um pastiche da nouvelle vague italiana e francesa, e perdeu essa coisa primordial, essa música primordial, que era aquela luz que estava ali”.

noticia por : UOL

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