O aumento das temperaturas poderá impulsionar a disseminação global de um fungo mortal que infecta milhões de pessoas por ano, de acordo com novas pesquisas sobre como as mudanças climáticas estão alimentando graves ameaças de doenças.
A família Aspergillus poderá expandir seu alcance para faixas mais setentrionais da Europa, Ásia e Américas, destacando a ameaça sorrateira dos mofos que já são estimados como sendo um fator em 5% de todas as mortes mundiais.
As mudanças climáticas estão ampliando o alcance geográfico de muitos patógenos potencialmente letais, como aqueles transmitidos por mosquitos. Os fungos são um perigo em particular devido aos seus esporos difíceis de detectar, à escassez de tratamentos para as doenças que desencadeiam e à crescente resistência aos medicamentos existentes.
O mundo está agora se aproximando de um ponto de inflexão na proliferação de patógenos fúngicos cujos habitats variam de terras áridas a cantos úmidos e quentes de casas, alertou Norman van Rhijn, coautor da nova pesquisa sobre Aspergillus.
“Estamos falando de centenas de milhares de vidas e mudanças continentais nas distribuições de espécies”, disse Van Rhijn, pesquisador do Wellcome Trust na Universidade de Manchester, especializado em infecções fúngicas e evolução microbiana. “Em 50 anos, onde as coisas crescem e com o que você se infecta será completamente diferente.”
O fungo fictício que altera o cérebro, retratado na série de televisão pós-apocalíptica “The Last of Us” como exterminando grande parte da humanidade, trouxe a ameaça para um público mais amplo. Mas o perigo no mundo real ainda é subestimado.
A micologia, o estudo dos fungos, é um campo de muitos mistérios. Mais de 90% das espécies de fungos “permanecem desconhecidas para a ciência“, de acordo com um relatório de 2023 dos Jardins Botânicos Reais de Kew, no Reino Unido. Isso os torna muito menos compreendidos do que grandes partes dos reinos vegetal e animal.
Cerca de 3,8 milhões de pessoas morrem por ano com infecções fúngicas invasivas, sendo o patógeno a principal causa de morte em 2,5 milhões desses casos, segundo pesquisa publicada no ano passado.
Um perigo importante é a aspergilose, uma doença pulmonar causada por esporos de Aspergillus que podem se espalhar para outros órgãos, incluindo o cérebro. Muitas infecções são detectadas tardiamente ou nunca, por causa da falta de familiaridade dos profissionais médicos ou porque os sintomas são confundidos com os de outras condições.
O Aspergillus, que ganhou esse nome no século 18 por sua semelhança com um dispositivo usado para aspergir água benta, trouxe benefícios à humanidade, além de perigos.
Algumas espécies têm usos que vão desde a química industrial até a fermentação de molho de soja e saquê. Outras, porém, são potencialmente perigosas para a saúde.
Embora a maioria das pessoas não adoeça ao inalar esporos de Aspergillus, a taxa de mortalidade pode ser alta se a infecção se estabelecer. Eles são uma ameaça particular para o número crescente de pessoas com sistemas imunológicos enfraquecidos por condições como asma ou fibrose cística, ou por tratamentos médicos como quimioterapia.
A espécie Aspergillus fumigatus foi considerada como 1 dos 4 patógenos fúngicos críticos que representavam o maior risco, de acordo com a primeira lista de ameaças desse tipo publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022.
A mais recente pesquisa sobre fungos, financiada pela Wellcome e divulgada no início deste mês, apontou que o A. fumigatus pode se espalhar para um território adicional de 77% até 2100 se o mundo continuar a usar combustíveis fósseis intensamente. Seu alcance avançaria em direção ao polo Norte, expondo mais 9 milhões de pessoas na Europa à infecção.
A espécie pode crescer “surpreendentemente rápido” em altas temperaturas no composto onde vive, segundo a professora Elaine Bignell, codiretora do Centro MRC para Micologia Médica na Universidade de Exeter.
Isso pode tê-lo equipado para sobreviver e prosperar nas temperaturas do corpo humano de cerca de 37°C. “Seu estilo de vida no ambiente natural pode ter proporcionado ao A. fumigatus a vantagem adaptativa necessária para colonizar os pulmões humanos”, disse Bignell.
Uma segunda espécie no estudo mais recente, Aspergillus flavus, vive em muitas culturas e poderia se espalhar para um território adicional de 16% até 2100, projetam os pesquisadores.
Isso lhe daria novos ou maiores pontos de apoio no norte da China, Rússia, Escandinávia e Alasca, enquanto tornaria alguns habitats existentes em países africanos e no Brasil inóspitos. Esse desaparecimento teria efeitos mistos, pois perturbaria ecossistemas nos quais o Aspergillus desempenha um papel vital na reciclagem de produtos químicos cruciais para a vida.
A perspectiva de propagação geográfica do A. flavus era “potencialmente muito preocupante”, disse Darius Armstrong-James, professor de doenças infecciosas e micologia médica no Imperial College London. Pesquisas sugeriram que a espécie causou surtos de doenças em países como a Dinamarca.
O A. flavus também produz produtos químicos prejudiciais chamados aflatoxinas que podem causar cânceres ou danos hepáticos potencialmente fatais. Temperaturas mais altas e níveis de CO₂ podem aumentar a produção da toxina e contaminar seus hospedeiros de culturas, descobriram os cientistas.
“Existem sérias ameaças deste organismo tanto em termos de saúde humana quanto de segurança alimentar”, disse Armstrong-James, acrescentando que dados recentes sugeriram que o A. flavus pode desenvolver alta resistência a fungicidas.
O desenvolvimento de medicamentos antifúngicos tem sido prejudicado pela falta de atratividade financeira de investir neles, em razão dos altos custos e dúvidas sobre sua rentabilidade.
A nova pesquisa sobre Aspergillus se soma a um crescente corpo de trabalho que sugere que eventos climáticos extremos e fenômenos relacionados, como incêndios florestais, provavelmente impulsionarão a propagação de fungos perigosos.
Secas seguidas de chuvas fortes podem desencadear perturbações do solo e liberação de esporos no ar, segundo a cientista Brittany Bustamante, da Universidade da Califórnia, Berkeley, que estuda a epidemiologia da aspergilose.
A UC Berkeley está liderando um projeto de cinco anos para usar big data para analisar registros médicos de 100 milhões de pacientes nos EUA, a fim de identificar fatores que afetam a incidência e a gravidade das infecções fúngicas.
Os pesquisadores descobriram que patógenos fúngicos como o Coccidioides, a causa da febre do Vale, uma doença respiratória potencialmente grave, espalham-se mais amplamente após secas e outras mudanças ligadas ao clima.
O Coccidioides, que vive nos solos de regiões quentes e secas, já expandiu seu habitat do sudoeste dos EUA para o estado de Washington.
Desde 2020, os dados sugeriram que os maiores aumentos na aspergilose ocorreram em indivíduos latinos e pessoas que viviam em áreas rurais, de acordo com Bustamante.
As razões para isso não eram claras, mas poderiam estar ligadas a pessoas que tiveram Covid grave —e talvez não conseguiram acessar tratamento de sistemas de saúde sobrecarregados.
“Dado o potencial das mudanças climáticas para impulsionar futuros surtos de doenças respiratórias, infecções fúngicas secundárias como a aspergilose provavelmente continuarão sendo uma séria preocupação de saúde pública”, disse Bustamante. “E as pessoas com maior risco provavelmente serão aquelas que já enfrentam desvantagens estruturais e maior exposição a riscos ambientais como a poluição.”
noticia por : UOL